Há uma proposição no título do livro de estreia do multiartista e poeta André Raimundo que oferece uma boa chave de interpretação para o seu trabalho literário. Haikai Blues. Dois termos que designam, mais que formas composicionais, a própria identidade cultural de dois povos distintos. De um lado, poetas zens japoneses, de outro, os pretos escravizados americanos. Esta oposição inicial marca a poesia de André se desdobrando em outras oposições no decorrer do livro. Se, de um lado, o poeta é lírico e imbuído de certo ardor romântico, de outro, a representação final desta amorosidade é violenta, até agressiva:
vou escrever teu nome
na artéria principal do meu coração
com uma gillette enferrujada
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amor
esse prego esgarçado
fincado na gengiva
Parece mesmo que é na exploração compulsiva do tema amoroso que o poeta encontra o próprio sentido de se escrever:
o amor
porrada inventada
na página vazia
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nariz tão branco
no meio do buraco
amor
tecido
Outra oposição que se expressa com frequência no livro é a que André realiza entre a universalidade e o aspecto domiciliar de alguns poemas, criando um efeito universal-particular repleto de significados:
rastro de perfume
morangos na geladeira
remédio psiquiátrico
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aqui em casa
tudo vira cinzeiro
Existe também uma oposição entre as variantes linguísticas usadas pelo autor, que no curto espaço de um pequeno poema consegue condensar modos diferentes de uso da língua:
no batente da janela
uma migalha do inexorável
vapor de cu na cara
Ainda, a oposição clássica entre o sagrado e o profano é recolocada com máximo poder de síntese:
invadir o inferno
levar flores de fogo
beijar anjos na boca
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no largo são francisco
encontrei jesus cristo
cheirando cocaína
André opõe também, estruturalmente, poemas com abordagens diferentes durante o livro. De uma página para outra podemos sair de um realismo crítico para um surrealismo humorístico:
ontem fui ao dentista
implantar meu útero
na cadeira do analista
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quando as borboletas gritam
somente os cães conseguem ouvir
a imensa dor dos sapos
É este humor, inclusive, outra maneira do autor criar oposições. A auto-ironia, assim, se torna marca pungente do poeta que sabe que mesmo a poesia não precisa ser assim tão séria para figurar num livro:
poema basta
gasta
até o osso
assunto do ócio
André também consegue opor ao tom fortemente furioso da maioria dos textos momentos de surpreendente leveza e imagens sutis:
vou escrever um poeminha
que cabe numa linha
de pesca
Enfim, voltando ao título do livro, mais que uma inspiração nas formas, ora semelhantes, do haicai e do blues, André Raimundo busca pela intersecção de múltiplos sentidos em poemas abertos e livres de interpretações absolutas:
na boca
uma a uma
úmida
Vale a leitura, para não se esquecer que:
a matéria do poema
se espalha pelo dia
carlos andré
nov/2024
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